Roda de conversa - Gabriela Cabrera
- Gabriela dos Santos Cabrera

- 15 de out.
- 9 min de leitura
Há certos privilégios na vida que, muitas vezes, não conseguimos perceber. Clarice Lispector, por exemplo, coloca em belíssimas palavras “a vantagem de não saber”, a arte da alma humana de entender tudo, sem entender nada. Parece um tanto rústico e até retrógrado assumirmos o lugar do não-saber enquanto estamos envoltos por infinitas cobranças para que saibamos sobre tudo — mesmo isso significando mal conseguirmos tocar profundamente qualquer parte de nós ou do mundo. Nesse dilema do nosso tempo, precisamos encontrar algum jeito para “ser” e “viver”, verbos que apenas se colocam em movimento no gerúndio: sendo e vivendo.
Para mim, uma forma de encontrar esse caminho foi a graduação. Depois de altos e baixos, entre indecisões e incertezas, ingressei no curso de Letras da UFGD no segundo semestre de 2021. Era um momento muito conturbado, a Universidade ainda estava voltando aos poucos a funcionar após o pico da pandemia de Covid-19 e as aulas, nesse período, mantinham-se online. Quando iniciei o curso, meu desejo era participar de tudo que fosse possível e ter diferentes experiências; a primeira delas foi o PET. Durante a recepção dos calouros — feita remotamente — os grupos ativos da graduação se apresentaram, mostrando as atividades que realizavam. Dentre as opções, o que mais me cativou foi o PET Letras e logo de cara me inscrevi para concorrer ao edital de seleção do programa. Como entrei um pouco mais velha — já tinha completado 21 anos — tentei trilhar meu caminho na universidade da maneira mais sóbria possível, entendendo minhas limitações e dificuldades para não passar do limite querendo abraçar tudo de uma vez.
Acredito que um grande diferencial na jornada universitária é ser consciente de que a graduação não é só um degrau para ir mais longe, mas sim um lugar onde a vida acontece a todo tempo, com oportunidades para tentar, errar e não saber. Os alunos que passaram pelo PET podem relatar bem o quanto reconhecer nossas limitações são pontos necessários para se desenvolver de maneira saudável. Por se tratar de um programa com carga horária fixa e de trabalho árduo, é muito fácil que o aluno acabe se sobrecarregando. A esse aspecto, já conecto a importância de construir um grupo de confiança, no qual os integrantes sintam que podem contar e cuidar uns com os outros e quando um não estiver bem, confiar que outra pessoa vai realizar o trabalho. Cultivar um ambiente de respeito e empatia é essencial para ter um grupo com boa comunicação, esses foram fundamentos fomentados pelo PET - Saúde Mental. Frente ao cenário pós-pandêmico e o retorno a uma universidade que tentava se restabelecer, propor reuniões que ajudassem os petianos a processarem suas emoções fortaleceu o grupo e nos ajudou a continuar.
Fiquei no PET por 3 anos e meio, mesmo tempo que levei para me graduar também em Letras com habilitação em Língua Inglesa. Em um determinado momento, o PET Letras foi o único grupo ativo na FALE visto que, devido a questões de edital, o PIBID tinha paralisado as atividades por um tempo e o Centro Acadêmico estava inativo. Nesta época, o PET tornou-se o braço direito da administração, estando presente em tudo que conseguíamos colaborar — até mesmo a primeira equipe de reabertura do Centro Acadêmico de Letras foi composta, em parte, por petianos. Contudo, embora fosse um momento que demonstrasse a suma importância da existência do programa, o lado humano acabou pesando bastante. Eram muitas demandas e convites que excediam o cronograma estabelecido pelo grupo mensal e anualmente dentro da carga horária. Em diversos momentos chegamos à exaustão tentando responder a todas as solicitações, porque sabíamos que se não participássemos, muitos eventos poderiam não acontecer ou não atingir seu objetivo. Não foi um período qualquer: vivíamos sob o medo de o curso ser fechado pelo baixo número de alunos ingressantes, a Universidade passava por um intenso sucateamento, a UFGD estava sob intervenção e o clima de insegurança pós-Covid 19 era assustador. Nós não podíamos parar e não podíamos dizer não.
Quando não organizávamos o Faculdades Abertas e a Recepção de calouros, estávamos pelo menos prestando auxílio. Ajudamos no primeiro Arraiá da FALE, organizamos vários eventos dentro da Universidade, cedemos cursos de capacitação tanto em escolas quanto para desenvolvimento do próprio grupo, além, claro, de atuar em parceria com outros PETs e participar como comunicadores em vários eventos acadêmicos. Sustentamos um blog, um podcast — o primeiro da FALE — um canal do YouTube, redes sociais em diversas plataformas digitais e uma produção textual recorrente. Por trás de cada movimentação do programa, sempre houve e haverá muito esforço envolvido. Coloco como exemplo o blog, do qual fui revisora principal por um bom tempo e por isso conheço com mais propriedade seus pormenores. Para ser feita uma única publicação é necessária a mobilização de pelo menos quatro pessoas: o escritor, o revisor, quem faz a capa e quem publica. Nos últimos anos, tínhamos mobilizado também pessoas para organizar as datas e a ordem das publicações, portanto, mais duas pessoas.
Vendo a situação como um todo, acredito que nesse momento desafiador nossos vínculos foram se aprofundando. Estávamos todos muito cansados e sensibilizados, e compartilhar essa dificuldade nos levou a dialogar mais, desabafar e olhar com mais empatia para nós mesmos e para nossos colegas. Relembrar esses dias atualmente traz muita paz por sabermos que fizemos tudo que podíamos e fomos agraciados por podermos contemplar os frutos enquanto ainda estávamos na graduação. Tivemos o privilégio de ver a FALE voltar a ter cores, vozes, rodas de amigos, música e literatura nos corredores. Vimos também o PIBID, o Centro Acadêmico e a Atlética voltarem às atividades. Ainda bem que não paramos. Ainda bem que tínhamos uns aos outros. E ainda bem que acreditamos mesmo quando não sabíamos o que viria pela frente.
Mas…
Apesar dos grandes desafios, também fomos presenteados com muitas alegrias — e, quando falamos em alegria, a gente geralmente lembra das viagens. Estive em quatro delas, três culturais e uma de evento. A primeira foi para Bonito - MS em 2022, para o Festival de Inverno. Pudemos presenciar muitas atrações artísticas e encontramos pessoas do Brasil todo, inclusive de Dourados. Conseguimos transporte pela UFGD, e o restante do dinheiro para pagar a acomodação com café da manhã foi arrecadado através do esforço do grupo PET. A divisão dos quartos foi milimétrica, quase não tínhamos onde pisar, qualquer brechinha tinha alguém dormindo. Foi uma primeira experiência muito gostosa. No ano seguinte, em 2023, fomos para a segunda viagem cultural: Campo Grande - MS. Durou apenas um dia, mas conhecemos vários lugares: primeiro visitamos o Bioparque Pantanal, depois passamos no Museu das culturas Dom Bosco apenas para conhecer a estrutura, pois o museu estava fechado. Na parte da tarde, fizemos um tour guiado na Casa-Quintal Manoel de Barros, a própria casa do escritor que agora está aberta para visitações. Ao fim do dia, para encerrar, fomos em algumas lojas e sebos da cidade.
A terceira viagem foi em 2024 para Cuiabá - MT, desta vez para participarmos do SEREX (Seminário de Extensão Universitária). Sete petianos apresentaram três trabalhos sobre atividades do PET Letras. Ficamos até o fim do evento e pudemos aproveitar, nos momentos possíveis, os pontos turísticos da cidade. Apesar do calor intenso, pudemos conhecer bastante da cultura local e conhecermos colegas de outros estados da região. Por fim, a última viagem cultural em que estive presente foi também em 2024 para Rosana - SP. Lá, estávamos próximos a Usina Sérgio Motta, podendo vê-la por fora. Assim que chegamos, fizemos um passeio de barco pelo rio Paraná, passamos por comunidades ribeirinhas, ilhas que estão no meio do caminho e pelo ponto onde avistamos a divisa entre São Paulo, Mato Grosso do Sul e Paraná. Subimos ao mirante para ver o rio em sua deslumbrante extensão, apenas aquilo que os olhos podem ver, pois o rio se estende por muitos quilômetros a mais. Conheci com alguns colegas a Draga - embarcação que retira areia do fundo da água, acompanhamos um pouco da logística de seu transporte para outros lugares do Brasil. A viagem durou cerca de três dias e nos proporcionou momentos muito bons.
Nos altos e baixos, sempre destaco que minha memória mais afetiva com o grupo foi a convivência, o dia a dia juntos. Independentemente das nossas diferenças, criamos um ambiente de bastante amizade em que acabávamos inventando motivos para nos reunirmos e tomarmos um café. Com o tempo, fomos desenvolvendo um certo sentido de família, de ter um lugar para pertencer. Nos dias de hoje, os relacionamentos parecem estar mais distanciados e as pessoas mais individualistas, mas essa lógica é confrontada quando se passa pela convivência em grupo. Por isso acredito que participar de um durante a formação seja tão importante, especialmente para aqueles que deixam suas casas e seus familiares para vir estudar esse acolhimento muda tudo. Ter uma rede de apoio expande as perspectivas acadêmicas e contribui para evitar que os alunos desistam do curso, além de incentivá-los a continuar estudando na pós-graduação. Acabei conhecendo vários alunos, de diferentes anos do curso e com diferentes histórias. Nesses três anos e meio, o grupo foi renovado uma porção de vezes.
Todas essas características que descrevi ao longo do texto sobre minha experiência no PET Letras contribuíram para o meu desenvolvimento pessoal, bem como acadêmico. O programa é muito diverso e nos ensina a termos um pouco mais de fé no nosso trabalho e sermos profissionais que se esforçam para ver além.
No decorrer do relato não falei diretamente a respeito da nossa querida tutora porque queria dedicar algumas linhas especialmente para reafirmar o quanto ela foi fundamental para nossa formação como pessoas e profissionais. Tanto eu quanto a Célia entramos no PET em setembro de 2021 enquanto o edital para alunos acontecia simultaneamente ao de tutor(a), por isso, iniciamos nossa jornada juntas e fomos aprendendo o funcionamento do programa ao mesmo tempo. Cheguei ao grupo bem tímida e insegura por não conhecer ninguém e ser caloura no curso, não estando ainda familiarizada com a maioria das coisas. Meu primeiro contato com todos foi online, o que talvez tenha dificultado meu entrosamento naquele momento, mas durantes as votações todos eram chamados — o que me tirava do meu esconderijo. Quando voltamos aos encontros presenciais, a tutora Célia sempre me incentivou a falar, opinar e sugerir e isso, somado à acolhida do grupo, foi me levando a ter mais confiança para me expressar. Minha primeira Iniciação Científica também foi a partir do PET e a convite da tutora, que me ensinou as principais bases para realizar uma boa pesquisa.
Particularmente, a observei e aprendi ao máximo com sua extensa experiência. Nossa tutora foi sempre acessível e podíamos conversar sobre qualquer assunto com ela, por mais que isso levasse, às vezes, horas de diálogo. Acredito que a tutora Célia foi fundamental para construirmos ao longo dos anos um ambiente democrático, afetivo, de diálogo e autonomia. Ela ouviu críticas assim como todos nós na posição de alunos e isso é algo que admiro muito, a vaidade não a colocou em um lugar do qual ela não pudesse descer. Passamos juntos por diversas situações que, se fossem descritas aqui, alçariam um punhado de páginas. A minha intenção é apenas lembrar que passamos por muitas dores, muitas alegrias e isso nos fez desenvolver um laço de amizade. E, na minha colação de grau, não poderia ter escolhido outra pessoa senão ela para entregar meu diploma. Desde os primeiros dias na UFGD até o último, a Célia fez parte da minha formação como professora e ser humano.
Em 2025, estou cursando meu primeiro ano de mestrado em literatura — completei o primeiro semestre recentemente. Em comparação à graduação, é um período mais solitário e menos “agitado”. Digo isso pois no meu último período da faculdade, estive em vários programas, eventos e disciplinas; desse jeito, sempre estava em contato com diferentes pessoas, professores e atividades vinculadas à UFGD. Neste ano, a conexão com a faculdade fica mais a cargo das disciplinas, grupos de estudos e eventos em menor quantidade. O mais pesado são as leituras que, além das referentes às disciplinas, são voltadas para a pesquisa individual, de maneira mais reservada. Meu histórico no PET me permitiu acumular bastante experiência e construir um currículo bem diversificado, o que auxiliou no meu processo de entrada na pós-graduação.
Bom, acredito que eu tenha falado bastante sobre minha experiência no PET Letras e, mesmo assim, lembro de muitas outras histórias que ficarão para uma outra oportunidade. Sou muito grata ao programa pelo que pude construir com o grupo e por todo amadurecimento que alcancei durante minha participação. Tudo começou com uma decisão seguramente insegura da minha parte de cursar Letras e, bem, terminei sendo e vivendo. Apesar das primeiras dificuldades, ter um grupo para pertencer me incentivou a continuar. Penso, então, que Clarice Lispector tinha razão. Há poucas coisas que sabemos na vida, mas de alguma forma, a gente sempre sabe. Sem saber, sabemos. Vamos lembrar e esquecer, estranhar e reconhecer, mas tudo faz parte de “ser” e “viver”. Todas essas histórias estão agora no passado. Já fomos e já vivemos. Mas guardemos o que é bom para sempre encontrarmos outros jeitos de estarmos aqui, sendo e vivendo no presente.
Obrigada, PET Letras.
Gabriela Cabrera.


Revisado por: Ana Louise



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