PET - Cine apresenta: Medida Provisória
- Gabriela dos Santos Cabrera
- 25 de jun. de 2023
- 4 min de leitura

Fonte: Brasil de fato, acesso em: https://www.brasildefato.com.br/2022/04/14/filme-medida-provisoria-leva-para-o-cinema-debate-sobre-racismo-e-opressao
No dia 29 de setembro, tivemos mais um encontro com o PET Geografia e PET Agronomia para assistirmos um filme e discutir os mais diversos aspectos como preconceitos, abismos socias, fotografia, representações dentre outros. O longa metragem escolhido foi Medida Provisória, após a reprodução do filme, abrimos um momento de conversa para trocar percepções e compreensões. Neste post, compartilhamos a resenha crítica que foi produzida depois desse debate, o texto foi escrito pela aluna Gabriela Cabrera, integrante do PET Letras.
“Será que enquanto estamos vivendo percebemos a História?”, essa é uma das frases presentes logo no início do filme “Medida Provisória” e nos faz refletir sobre o quanto muitas vezes estamos imersos nos discursos que nos contam e nos afastam do passado, sendo que, sem percebermos, aqueles dias longínquos, condenados por nós, ainda continuam muito vívidos em nosso cotidiano. O longa-metragem é uma adaptação da obra teatral “Namíbia, Não” de Aldri Anunciação e foi dirigido por Lázaro Ramos. Trata-se de uma distopia na qual, no Brasil do futuro, o Estado é processado pelo período da escravização e, embora assinta, a medida de reparação implementada pelo Estado é a de levar os (as) “melanina acentuados (as)" de volta para o continente africano. Em relação ao ritmo narrativo, o filme não é conduzido de maneira tranquila, pelo contrário, as passagens são rápidas, abruptas e mesmo que isso seja um fator incomodativo para alguns, também pode ser visto como um elemento importante para a construção de sentido da violência racial existente em nosso país.
Um primeiro ponto a ser abordado é a compreensão errônea de se associar etnia a um lugar geográfico específico. Quando o “ministro da devolução” coloca em prática a ação de deportar os (as) negros (as) do Brasil, dois pontos ficam em evidência: a objetificação da pessoa humana - que não possui escolha e deve obedecer (BUTLER, 2002) - e o imaginário construído de que o sujeito social se identifica com seu grupo a partir somente de características externas - o critério para ser enviado para África era apenas visual. Dessa forma, o filme questiona o pensamento que ainda existe de subalternizar o indivíduo não branco e sua representação, a fim de mostrar que a cor não define o lugar de pertencimento dos indivíduos. Nesse sentido, um fator muito importante em toda a estruturação do roteiro é a referência ao continente africano como simplesmente “África”, ignorando os diferentes países, as diferentes etnias e a diversidade existente nesse local. Esse fato, por sua vez, relembra muitas das ações do período Neocolonialista, no qual não foram respeitados os limites culturais e sociais na partilha do território africano. Assim, notamos a redução do que é ser negro (a) a questões supérfluas e, nessa perspectiva, Medida Provisória resgata a importância das origens africanas e ancestrais para a persistência desse grupo e sua constituição social, ressaltando a mesmo nível que isso não os torna menos brasileiros em relação a qualquer outro cidadão. Essa é uma visão que compreende a igualdade como capaz de abarcar também as diferenças (PIMENTA, 2013).
Nesse contexto, entendemos que a atitude do personagem Antônio de processar o Estado pela escravização pressupunha que as esferas estatais reconhecessem e assumissem a responsabilidade pelas ações não só do referido período, mas também pela invisibilização diária, pela falta de assistência e por toda a violência que permeia os afrodescendentes ao longo dos últimos cinco séculos. Porém, o que observamos na narrativa é uma recusa das autoridades, as quais mascararam seu repúdio agindo novamente de forma desumana e reafirmando o discurso da superioridade branca. Dessa maneira, ao iniciar as prisões e o movimento forçado desse grupo para fora do país, são tomadas decisões que tornam a vida impossível para eles no Brasil, cenário que embora distópico é muito mais do que real. Hoje, não temos uma política de deportação, mas temos a negligência e indiferença do Estado e de parte da sociedade - entranhada no racismo estrutural - que não agem no sentido de inserir e envolver esses sujeitos na vida social, política e cultural do país, mas antes, tornam a sobrevivência uma piada. Mesmo que uma mulher negra, como a Capitu, ascenda na vida, tenha uma graduação e um trabalho estável, a discriminação não é refreada e, assim, notamos que o racismo não está associado somente às questões de classe social, mas, principalmente, no imaginário construído sobre a representação do que é ser negro (a).
Outro ponto de grande relevância no filme são os símbolos, os quais estão nas mais variadas cenas, seja nos objetos e decorações, seja nas palavras e imagens. Dentre os diferentes signos: a rua Machado de Assis e a personagem Capitu, o café preto e o café com leite, o sorvete de chocolate do ministro, as roupas se desconstruindo e reconstruindo na temática africana ao longo do filme, as grades e o fato de os (as) “melanina acentuados (as)” estarem presos por limites visíveis ou invisíveis, o cenário composto por elementos atuais e de décadas passadas , o decreto de número 1888 e outros exemplos, serão destacados dois: André se pintando de branco e os discursos da dona Izildinha. No primeiro caso, a cena do banho é emblemática, pois enquanto André tira a tinta do corpo também se limpa das imposições de viver e ser branco, das palavras que declararam quem ele era ou não em razão da sua cor. No segundo caso, a vizinha incorpora o discurso da inexistência do racismo, denunciando, sem que perceba, o próprio racismo estrutural tão negado na sociedade brasileira. Ambas as situações expõem que mesmo se falando em democracia racial e cordialidade do povo brasileiro, a verdade por trás desses discursos é perversa e sem correspondência com o dia a dia do nosso país..
Portanto, diante do exposto, podemos notar que a distopia proposta nesse filme não se trata de uma realidade tão distópica assim, de certa forma, é como se alguns traços fossem compartilhados entre o real e o imaginário. Mesmo não estando velada, sabemos que a violência que envolve as questões raciais muitas vezes passam despercebidas ou nos atravessam de maneira acostumada. Nesse sentido, o longa retrata o quanto essa segregação não é positiva para nenhum dos lados e termina como a cena em que tanto o branco quanto o negro acabam mortos por essa violência. Assim, é palpável nesta obra o quanto a ficção pode estar encharcada da não ficção.
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