Narrativa produzida a partir de vivência no Lar Amigo do Idoso, confira!!!
- PET Letras UFGD
- 20 de ago. de 2017
- 5 min de leitura
Autora: Alexandra Santos Pinheiro
“Esta é uma versão adaptada da história da filha da dona Rosa, moradora do Lar Amigo do Idoso, de Dourados. Em junho, fiquei impressionada com a situação da dona Rosa. Acamada, não reagia ao diálogo que tentei estabelecer com ela. Na janela, apenas mamadeiras vazias. Ao sair, sentei ao lado de uma senhora, que, por coincidência, era a filha única de dona Rosa. Fiquei emocionada com o seu relato, que permite compreender o quão difícil é, para muitos, deixar os seus pais e as suas mães em um Lar para idosos.”
Quem vê os moradores do Lar de Idosos de Dourados, pensa que todos os filhos ou filhas são cruéis. Eu mesma, quando visitava o lar em minha adolescência (vinha muito no Lar com o grupo de jovens da igreja), ficava indignada com o abandono que marcava este lugar. Eu nunca pensei nas pessoas que deixavam os velhinhos e velhinhas aqui. A matemática era simples: subtraíram quem os incomodava. Hoje, sempre que posso, conto a história de como a minha mãe, a Rosa, chegou até aqui. Ela está deitada lá no fundo, numa cama. Não anda, não fala e se alimenta pela ajuda de uma mamadeira. Mamãe tornou-se um bebê.
Se você tiver paciência, posso contar a história dela e, no fundo, a minha história também. Quer ouvir? Pois bem! Já fazia 10 anos que eu cuidava de minha mãe. Vítima de um AVC, ela só dependia de mim. Sou filha única, meu pai faleceu quando eu ainda era criança e, assim, éramos apenas mamãe e eu… eu e mamãe. Aos 17 anos, eu me apaixonei, engravidei do primeiro filho e me separei de mamãe para morar com aquele que, por algum tempo, foi “o homem de minha vida”. Depois do segundo filho, na verdade uma linda menina, o “o homem de minha vida” já não parecia com os príncipes que eu fui preparada para encontrar. Introspectivo, faltava afeto a mim e às crianças.
Mamãe, nesta época, sofreu o AVC. Foi algo fulminante. A minha única referência estava em coma, sobrevivia por aparelhos e eu, sem aparelhos, desesperei-me com a vida. Meu companheiro não demonstrou compaixão. Nunca a visitou ou dirigiu a mim palavras de conforto. Três meses depois, o médico deu alta à minha mãe, mas junto com a alta, um diagnóstico tenebroso: nunca mais falará, andará e, talvez, não reconheça mais ninguém. Parte da sentença não foi cumprida. Mamãe chorou quando, em minha casa, meus filhos se aproximaram dela e a beijaram. Lágrimas que provavam que ela sabia de nós, que ainda queria estar conosco.
Claro que a presença de mamãe significou o rompimento definitivo com meu marido, aquele que já não era ninguém para mim. Dali em diante, e olha que foram 10 anos, vivi apenas para as crianças e para mamãe. Ela conseguiu uma aposentadoria e eu necessitei voltar ao trabalho. Meus filhos se revezavam para cuidar da avó durante o dia e, à noite, eu velava ao seu lado. Fraldas, alimentos especiais, remédios… muitos remédios… e o desejo de que ela não morresse nunca. Minha mãe era o meu elo com a vida.
Dez anos se passaram, as crianças cresceram e já não conseguiam conciliar a lida com a avó e os seus interesses pessoais. Pela primeira vez, senti-me abandonada. Abraçava minha mãe e chorava. Os anos de cama comprometeram o sistema circulatório de mamãe e foi preciso amputar a sua perna direita. Na mesma época, eu adoeci. Recebi o diagnóstico de que umcâncer se instalou ferozmente em meu seio. E o que fazer? O filho já estava na universidade. Trabalhava o dia inteiro e estudava à noite. A filha estava saindo da adolescência, ainda se mantinha distante e parecia, o que se confirmou depois, que havia herdado a indiferença do pai.
Necessitava retirar a mama, submeter-me à quimioterapia… Como cuidar de mamãe? Uma amiga recomendou o Lar de Idosos. Esta ideia me atormentou, me ofendeu, me magoou e, depois, passou a ser a melhor opção. Repassei a aposentadoria de mamãe para o lar e a trouxe para cá. Sempre que podia, vinha visita-la. Quando vim com a cabeça raspada, ela não demonstrou me reconhecer. Conversei muito ao lado dela, ainda que ela não entendesse, falei de nós, de nossa história e de minha doença e ela balançava a cabeça como uma criança que parece se esforçar por entender uma história.
Depois de sete meses, livre do câncer, com os cabelos renascendo em mim, busquei a minha mãe. A levei para casa, a coloquei no mesmo quarto, na mesma cama, ao lado da minha. Minha filha estava mais madura e voltou a me ajudar a “criar” a nossa Rosa. Difícil foi reconhecer que a nossa Rosa já não queria estar em nosso jardim. Ela emagreceu, manteve-se sem expressão. Minha voz não representava muito e a neta dela foi perdendo a vontade de estar ao lado de alguém tão indiferente. Ano passado, ainda disse para a minha filha que indiferente era ela. Mamãe está doente, minha filha escolheu ser como o pai. Nada a comove.
Depois de meses de adaptação, minha mãe estava muito pior do que estava no dia em que havia sido levada ao Lar. Por recomendação médica, a trouxe de volta e aqui ela está há seis anos. São quase 17 anos cuidando daquela que me deu a vida. Ela não teve a chance de me dar irmãos e, assim, acalentos e pessoas com quem dividir a angústia de ter, por 17 anos, a minha mãe definhando. Depois da morte de papai, mamãe não aceitou nem pensar na ideia de estar com outro homem. Eu segui os seus passos. Também eu não me relacionei com mais ninguém depois que o pai de meus filhos me abandonou.
Quando eu era adolescente e visitava o lar, indignava-me com o abandono e a solidão dos velhinhos que moravam aqui. Agora, há dias em que invejo minha mãe. Pelo seu quartinho passam enfermeiras, médicos, cozinheiras e as pessoas da limpeza. Em minha casa, raramente passa alguém para saber de mim. Se eu me deixasse levar pelo egoísmo, levaria a minha de volta para casa. Poderia deitar ao seu lado e dormir acalentada por sua presença. Não posso fazer isto. Venho aqui todos os dias. Todos os dias mesmo. Falo com ela e, depois, sento no pátio. Converso com as pessoas e me sinto menos abandonada.
Acredita que tenho cinco netos? Dois meninos e três meninas. Tão lindos e lindas… Talvez, se eu tivesse tido tempo de ter mais irmãos, a solidão fosse tão intensa quanto é agora, quando tenho cinco netos e nenhuma companhia. Ano passado, voltou a ideia louca de me casar novamente. Mas com quem? E se mamãe melhora e volta para casa? “Homem dos sonhos” é coisa que não existe. Estou velha. Quando mamãe morrer, vou me permitir envelhecer de vez e aí vou eu mesma me instalar aqui, onde a vida é bem menos solitária. Sei lá. Foi assim, dona, que minha mãe, a dona Rosa, veio parar aqui.
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