Lamparina e refeição
- PET Letras UFGD
- 11 de set. de 2017
- 4 min de leitura
Ueslei A. de Oliveira
Texto produzido a partir de uma entrevista concedida em virtude das visitas do grupo PET-Letras-UFGD ao Lar de Idosos, na cidade de Dourados-MS. Ao compartilhar comigo a sua história, o Sr. Lourenço permitiu que o seu mundo fizesse parte do meu, sentar para ouvi-las foi me despir para estar suscetível aos ecos que eclodem da consciência e que nos tornam mais reflexivos.
Era um dia normal: o sol brilhava, estava quente e a vida ali parecia tomar seu rumo. Ainda estávamos tristonhos por causa das três últimas mortes ocorridas no Lar de Idosos, todas causadas em virtude de doenças relacionadas à idade. Apesar disto, continuava sendo difícil ficar tranquilo porque os meus colegas de morada começavam a reavivar os nossos corações com conversas que traziam boas lembranças.
Aqui sempre recebi muita visita, tanta gente! Esquecer do rosto de alguém ou de seu nome é tarefa das mais simples a serem realizadas. Pois bem, como eu dizia, era mais um daqueles dias que parecia ser normal, parecia, pois, sabendo que o próximo segundo é um futuro incerto, mal sabia eu o que me aguardava.
Lembra-se quando eu disse sobre receber muita visita? Perfeito, parto deste ponto para lhes contar esta história ocorrida há décadas, banhada num tempo profundo e com cheiro de querosene. Calma! Explico: quando eu era criança, vivia com minhas mãos ocupadas por lamparinas. Eu não gostava de escuro (e ainda não gosto). Por isso, tais objetos não permitiam o meu sono sem aquele cheiro do combustível em minhas mãos, isso sem dizer dos dias que eu as queimava, como resultado de algum descuido imediato.
Voltando ao momento presente, vejo se aproximar um garoto que logo vai dizendo:
-Boa tarde senhor Lourenço, tudo bem com o senhor?
Eu soltei um sorriso, meu sorriso é frouxo, um copo d’água e um sorriso não se pode negar a ninguém, respondi de pronto:
-Boa tarde, sente-se aí. Pode se sentar.
Logo em seguida, outro moço mais claro e de cabelos lisos também veio até mim e participou de toda aquela conversa (como algo mais próximo de um filme do que de uma prosa). Sentou-se e dali só saiu quando ele pareceu ir embora. Aquele moço de óculos veio, o primeiro que eu citei, e começou a fazer algumas perguntas que me deixaram um tanto confuso. Ele sabia o meu nome, perguntava se eu me lembrava dele; e, da maneira que ele se dirigia a mim, parecíamos íntimos, mas não me lembro se permiti ou não, em algum dia, tal intimidade. Queria saber se há muito eu estava ali, se as companhias dos colegas eram boas, se eu me sentia feliz naquele lugar. Quando eu me dei conta, acabei saindo de mim e entrei num mundo que eu estava desenterrando.
Tudo começou lá atrás, numa época marcada nas linhas de minhas mãos, nas minhas pernas machucadas e nestes meus ossos que dizem sustentar meu corpo. Pelas minhas recordações, eu era uma criança feliz, ainda sem perceber o quanto era difícil viver naquela situação. Quando dia, minhas mãos se queimavam pelo calor do Sol, quando noite, pelo calor da lamparina que aquecia aquela lata que exalava um odor horrível de combustível ou qualquer coisa parecida. Hoje, eu percebo o quanto aquilo era ruim. A minha nova realidade permite fazer esta comparação, como saber sobre algo melhor se eu nem imaginava que existia outra forma de viver além daquela que eu vivia? Suponho que me entendam. O Sol queimava a pele, dava o seu recado de que a vida é cara, tem que pagar com a moeda mais valiosa para uns e cara para outros, o trabalho. Nunca tive medo da vida, então, estava disposto a pagar. Não me fiz doutor, afinal, o que é isso? Não tinha utilidade para mim. Mais vale uma barriga cheia do que um papel rasgado e amarelado pelo tempo. Quando se é pobre, o estudo é um prêmio, uma perspectiva; algo que eu só descobri muito mais adiante… sem saber até hoje se estou certo ou não.
Os anos iam me deixando cada dia mais distante daquela criança, o suficiente para me fazer mudar. Saí daquela lavoura, ela, porém, jamais saiu de mim. Parti para outros centros, fui para Maracaju, Itaporã (é em Itaporã que moram os meus parentes que nunca vêm me visitar). Segui a vida. Ia para os bailes, eu não dançava, ainda vejo os bailares, rodopios, as canções cantadas por todos, mas não dancei; não ali. Acostumado a viver comigo mesmo. Minha própria companheira era a solidão. Me fiz solteiro a vida inteira. Não multipliquei, não procriei. Não, não assim. Ou bem…, sim. Se antes eram três, agora já são cincos vezes. Aaaah, fui e cheguei. Poxa, naquele tempo tive a oportunidade de ir para vários lugares, as minhas pernas ainda permitiam a caminhada ou a corrida. Bons tempos. Um pouco mais consciente de tudo o que eu vivi, compreendo o quanto de história carrego. O quanto eu vi, vivi, muito mais histórias do que estas que estou compartilhando.
Agora, caminho com cautela, lentamente também se chega. Aprenda meu filho, é melhor pingar do que secar. A vida tem disso. Cada dia por vez, no quarto ou na varanda. É verdade, neste lugar vou comer cinco vezes, este é o meu pagamento. Se antes eu já não era sozinho porque a solidão me acompanhava, hoje eu tenho companheiros de morada que cantam comigo. Dor é o reflexo do caminho de todos nós. Como aquela que vínhamos sentido desde a semana passada quando três de nossos amigos partiram rumo à casa do Pai. Como eu sou grato por este lugar. Amém! Cheguei e descansei. E bem tranquilo, pude reviver, para assim contar aos dois jovens, que me olhavam com olhos brilhantes, uma parte disso que eu vivi, que muitos nomeiam Vida, mas que eu chamo de Aprendizado.
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