D, de Dalma
- PET Letras UFGD
- 23 de set. de 2019
- 2 min de leitura
(Texto escrito a partir de vivências no Lar amigo do idoso de Dourados – MS; projeto de extensão desenvolvido pelo PET-Letras UFGD)
Por Gabriele C.
Aquela gente há de me pagar! Pensava enquanto via formar-se o que futuramente seria um cachecol com D, de Dalma. Afinal, naquele lugar era preciso delimitar muito bem quais coisas eram minhas. Onde é que já se viu? Tendo casa. Eu não sou uma inválida. Antes de chegar ali, morava com as minhas sobrinhas, tão queridas. Elas trabalhavam demais, sabe? Um orgulho. Uma era advogada, a outra dentista. Eu jamais poderia imaginar que no auge dos meus 72 anos teria que lidar com um desaforo daqueles. Mas a culpa era daqueles vizinhos, fofoqueiros! Janice havia me dito que eles murmuravam pelos cantos “Como é que essas gurias têm coragem de deixar uma senhora dessas sozinha?”. Um dia desses, Marcela mesmo afirmou que a vizinha da frente bateu lá em casa. Disse que se minhas sobrinhas não tomassem uma atitude em relação a mim, ela denunciaria para as autoridades. Foi assim que vim parar aqui, na condição de que seria por pouco tempo.
Eu não era uma inválida, sabe? Apesar das mãos trêmulas, eu tricotava, vendia para fora. Aprendia pontos lindos cada vez que visitava a loja de linhas próxima ao transbordo. Meu coração ficava cheio, porque a vendedora era paciente para ensinar e eu tinha paixão naquilo. Em casa, tecia os meus dias. Tricotava as horas. Me relacionava com o tempo na medida em que o fazia. Hoje ele me foge. No espaço que ocupo agora não sou capaz de delimitá-lo. A última vez que pedi um calendário na secretaria eles disseram que me arrumariam, mas nada. Até pediria à Marcela, mas ela não aparece há cerca de três semanas, eu suponho. No início, as duas vinham todos os dias. Cada vez que eu as via, tudo ficava verde. Pensava “Hoje eu saio daqui para nunca mais”. Mas permaneci. Permaneci por escolha. Não queria trazer problemas para as minhas sobrinhas. Janice é a que vem com mais frequência agora. Talvez apareça amanhã. Não as culpo pela ausência; com certeza, estão trabalhando demais. Um orgulho.
Talvez eu reclame muito. Até que não é tão ruim, sabe? De fato, as enfermeiras são muito atenciosas. A comida é boa e o espaço era amplo. A grande questão é que a sensação de pertencimento eu só sentia em minha casa. Mas aqueles vizinhos malditos hão de me pagar! A justiça divina é implacável. Logo, logo Deus me livra desse lugar; eles verão. A vida me ensinou através do tempo: nenhuma dor é eterna.
A sensação é que um ano inteiro se passou desde que eu estou aqui. Sinto falta do meu tricô, que não era aquele tricô triste que eu tecia agora. Sinto falta de tecer os meus dias. Terminei o cachecol. Ouvi no noticiário que o frio está chegando. De longe podia ver o letreiro escrito em letras grandes: “Lar do Idoso” e uma jovem se aproximando. Será que ela me arruma um calendário?
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