Com amor, Paulo
- PET Letras UFGD
- 15 de out. de 2019
- 4 min de leitura
(Texto escrito a partir de vivências no Lar amigo do idoso de Dourados – MS; projeto de extensão desenvolvido pelo PET-Letras UFGD)
Glesyane Lopes Reis do Nascimento
Ainda ouço ecoar a voz de Lúcia dizendo aceitar o meu pedido de casamento. Seu sorriso estava especialmente lindo naquele momento, o que me fez ter mais certeza da escolha que eu havia feito. Mesmo já tendo se passado alguns dias, eu ainda sou capaz de sentir a eletricidade que percorria pelo meu corpo no momento que me preparava para surpreendê-la, como se cada um dos meus átomos também tivessem a certeza do quanto eu a amava.
Ontem pela manhã havia planejado um jantar para nós dois, mas Lúcia veio me contar sobre o aniversário de sua prima Cláudia. Mesmo um pouco relutante sobre concordar que ela fosse, disse por fim que não teria problema. Minha prima Ana fez companhia a Lúcia, e seu amigo foi dirigindo, o que me tranquilizou um pouco, já que me preocupava que ela fosse sozinha para outra cidade. Mesmo Itaporã sendo uma cidade vizinha, a estrada tem muitas curvas, o que pode causar empecilhos durante o trajeto.
Sentia-me triste por não poder a acompanhar, porque desde que começamos a namorar sempre estávamos na companhia um do outro. E ontem, em especial, me sentia com um mau pressentimento. Sei que podia não significar nada, mas me sentia ausente, com um aperto no peito e o pensamento longe, como se tudo a minha volta fosse instável, podendo a qualquer momento se liquefazer.
Decidi me deitar mais cedo para deixar os pensamentos ruins de lado. Mas meu sono estava muito leve então acordei logo cedo com o barulho que vinha da sala. Ao sair do quarto, ouço a voz da minha mãe e de meu amigo Antônio. A expressão dele não parecia nada boa e seu olhar estava aflito. Sentia que minha mãe também havia percebido sua agitação, passando a também ficar agitada. Pensei em não causar nenhum alarde, por isso perguntei calmamente a Antônio o porquê de sua visita tão repentina, e então… Aquela sensação voltou com toda força, estacionando-se inconscientemente em mim. Sentia como se um alarme fosse acionado, me avisando do que estava por vir.
Antônio gesticulava freneticamente, mas é como se as coisas ficassem em câmera lenta. Sua voz ecoava distantemente, de modo que se tornava difícil de alcançá-las. “Lúcia… um acidente… não resistiu…”. Então eu me dei conta. As palavras chegaram aos meus ouvidos como um estrondo: “Lúcia sofreu um acidente de carro. Infelizmente, ela não resistiu”. Não consegui processar rapidamente a informação. Nenhuma das palavras ditas por Antônio pareceu fazer sentido. Não conseguia acreditar que ela pudesse ter morrido. Não Lúcia, que ainda ontem estava sorrindo para mim, ao me pegar pela mão para mostrar o vestido que estava pensando em comprar para o casamento. Não Lúcia, com quem eu fiz tantos planos, prometendo nos amar mesmo no pior dos dias. Não Lúcia.
Sentia-me impotente diante das palavras proferidas pelo meu amigo. Não fui capaz de sair do lugar que estava, até que minha mãe veio a meu encontro me abraçando fortemente. Naquele momento, detalhes sobre o acidente foram ditos por Antônio através de palavras atropeladas. Lúcia, Ana, e o amigo de minha prima, decidiram ficar para um baile que teve após o aniversário. Laerte, o amigo de Ana, havia bebido além do necessário, e, mesmo estando visivelmente bêbado, todos concordaram em ir embora com ele dirigindo. Logo ao sair do local da festa, já no início do trajeto, ele estava na contra mão, outro carro vinha no mesmo sentido, e o motorista também estava bêbado. Os carros se colidiram provocando a morte de todos. Minha noiva foi arremessada do carro, causando em seu corpo várias lesões graves.
Agora, diante desse caixão lacrado, o aperto em meu peito aumenta, e nada disso parece ser real. Eu não quero que seja. Quero chegar e encontrar Lúcia me esperando com aquele seu lindo sorriso. Quero poder abraçá-la e dizer mais uma vez o quanto a amo, o quanto ela me faz falta. Não poder ver seu rosto, nem que seja pela última vez, faz desse momento ainda mais cruel. As pessoas, o lugar, o barulho, tudo a minha volta passa a me sufocar, então só desejo correr para outro lugar. Nessa hora caminho a passos largos até o banheiro, vejo a imagem que se projeta a minha frente no espelho. Olhos inchados que refletem uma noite mal dormida, e alguns momentos de choro. Olho as minhas mãos que tremem, mãos estas que não seguraram as de Lúcia em seus últimos momentos.
Olho novamente para o espelho. Vejo agora a imagem de um velho homem cansado e solitário em seu quarto. Relembrar o passado é quase como se eu pudesse ter meus 20 e poucos anos novamente, mas me vendo agora sou abrigado a voltar a realidade, a encarar que realmente tudo foi real, e que mesmo depois de todos esses anos ainda é difícil superar a falta de Lúcia.
As memórias chegam sempre tão vívidas até mim que quase posso vê-las se materializarem a minha frente. Talvez se eu desse apenas alguns passos poderia ser capaz de tocá-las. Mesmo hoje, marcado pela passagem do tempo, eu sou capaz de imaginá-la perfeitamente a minha frente. Seu rosto sereno, seu toque suave, sua voz doce e calma… Faltavam apenas dois meses para nos casarmos. Dois meses para o tão esperado “Sim”, dito no altar. Mas então… Veio a escuridão, e permaneci lá, atrás das grades que eu mesmo construí em minha mente. Fiz delas tão vívidas que me fechei. Neguei-me ao amor, a amar.
As lembranças são dolorosas, especialmente hoje, que seria a data do nosso casamento. Saio dos meus devaneios e volto a fixar meu olhar à mesa que está a minha frente. Mas especificamente, ao papel, já um pouco amassado, que se encontra em cima da mesa. Pego novamente a caneta, e então, escrevo: “Depois de todos esses anos eu ainda gostaria de ter feito algo por você, de ter estado ao seu lado quando você precisou de mim, mas só restaram as memórias. As lembranças do que um dia fomos e o imaginário do que poderíamos ter sido. Escrevo sobre você e para você, para que assim você sempre se faça presente em minha vida. Enquanto relembro o passado, escrevo as últimas linhas dessa carta para que assim eu possa reafirmar que meu amor ainda se faz presente, não sendo nem a passagem do tempo capaz de me fazer esquecê-la. Com amor, Paulo.”
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