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Breve devaneio

  • Foto do escritor: PET Letras UFGD
    PET Letras UFGD
  • 12 de set. de 2017
  • 3 min de leitura

Por Gabriele C.

[A mulher que inspirou este conto nasceu em Rio Brilhante, mas vive em Dourados desde criança. É Viúva, mãe de dois filhos e avó de cinco netos. Dedicou sua vida ao magistério desde os dezessete anos de idade. Lecionou matemática nas comunidades da Picadinha e Cabeceira Alegre. Hoje reside no Lar do Idoso de Dourados e afirma “Sou feliz aqui, graças a Deus”.]

A chuva lenta escorria pela janela do quarto, enquanto eu me levantava da cama, depois de um breve cochilo pós-almoço. Caminhei com dificuldade até a área de convívio e me sentei junto a meus pares, logo ali, na cadeira com rodinhas, de onde dava para ver o letreiro escrito com letras grandes: “Lar do idoso”. Sentia-me contente.

Cada vez mais crescia dentro de mim a certeza de que fiz a escolha certa ao rejeitar as insistências de meu irmão médico para que eu morasse com ele e sua família. Luis trabalha muito e mal tem tempo para as superficialidades da vida. Achei por bem ocupar minha velhice em um lugar onde tivesse companhia.

Naquela tarde, como era de costume, estávamos recebendo visitas. De longe, vi meu irmão, com seus cabelos grisalhos e ar de conhecimento bem característico de um médico. Ele se aproximou sorrindo e, com um gesto delicado, estendeu sua mão.

– Boa tarde, como vai, minha irmã? – Disse.

– Boa tarde, vou bem, graças a Deus. E você? – Ele se inclinou e me deu um longo abraço. Sentou-se ao meu lado e passamos a conversar.

Proseamos sobre nossos filhos, netos, infância, irmãos e pais.

– Você lembra quando fazíamos carretinhas de madeira para brincar? – Disse.

– Pois é, meu irmão. Naquele tempo, tínhamos que nos virar para fazer os próprios brinquedos. – Riamos juntos.

A presença de Luis sempre me faz mergulhar em minhas memórias. Quando me dei por conta, percebi que estava inserida nelas.

Naquele momento, não havia mais lar do idoso, não havia mais irmão, pelo menos não com a fisionomia de hoje. Não havia mais chuva escorrendo pela janela. Havia sol.

Eu agora era Maria, Mariazinha, menina correndo junto a Luis e os outros na estrada de chão.

De longe, ouvi a voz aguda de mamãe chamando meu nome.

– MARIA!

– JÁ VOU! – Respondi. Corri no sentido contrário. Ao passar pela porta de casa, vi minha mãe sentada frente à máquina de costura, com uma xícara de café ao lado. O cheiro do café me invadiu. Pensava “como é que algo tão amargo pode cheirar tão bem?”. Hesitei.

– Chega aqui com a mãe, filha. – Disse.

Aproximei-me, vendo-a costurar o que parecia um formato de bebê feito de pano. Deitei a cabeça em sua perna e observei sua costura tomando forma. Ela costurou olhinhos, a roupinha feita de um tecido todo estampado de flores e um par de sapatos cor de rosa. Ao perceber que aquilo possivelmente seria minha companheira de longas brincadeiras vespertinas, senti uma enorme excitação. Pulei e comecei a perguntar sem parar

– É pra mim é? É pra mim, mamãe? – Perguntava alegre, ao ver aquela bonequinha de pano novinha em folha.

Ela levantou, acariciou meu cabelo em um afago tranquilizador.[1]

– Sim, é sim, minha pequena. – Respondeu calmamente.

Agarrei aquela bonequinha de pano com as duas mãos e abracei minha mãe com força, agradecendo. Ah, se soubesse que não sentiria mais aquele abraço no futuro, jamais teria saído dele tão rápido. Mas, minha ânsia em brincar era maior naquele momento. Corri novamente. Ao passar pela porta, o sol já estava se pondo. Perdi a noção das horas que haviam passado enquanto mamãe costurava. Fechei os olhos.

Quando abri, estava de volta ao lar. Esfreguei as pálpebras, sentindo minha pele, que já não é firme como a da menina que eu era.

Percebi que enquanto conversava com Luis, havia mergulhado no mais íntimo do meu passado e tive a oportunidade de experimentar sentimentos dos quais já não me recordava.

Sorri para meu irmão e segui a prosa. Agora, sem devaneios. Mas extasiada por sentir, quase na pele, o afeto de minha mãe novamente.

[A pessoa que inspirou a personagem contou-me vários pontos de sua vida. Dos assuntos que decidiu compartilhar comigo, me identifiquei e escolhi tratar de sua relação com a mãe. Escolhi-o porque me fascina. O afeto de uma mãe para com o filho é exemplo de mais puro e intenso amor que jamais outra relação possa superar. Enquanto escrevia percebi que, assim como a personagem, havia mergulhado no mais íntimo dos meus próprios sentimentos.]

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