As Sombras da Memória
- PET Letras UFGD
- 2 de set. de 2019
- 2 min de leitura
Narrativa produzida a partir de vivência no Lar Amigo do Idoso.

Bruna Darold Dresch
Caro leitor, peço que acredite em minhas palavras. Você não consegue vê-los, mas eu vejo. Os invisíveis me perseguem desde o meu sexto ano de casada. Devia ter por volta de 30 anos. Pensei que ao chegar na velhice eu deixasse de interessar a eles. Afinal, para que serve uma mulher de 80 anos que traz as sequelas dos anos percorridos? Talvez eles me rondam, só para rir na minha morte.
À noite, ficam no canto do meu quarto e não me deixam dormir. Colocam dores nas minhas costas, e também na cabeça ao forçar-me a trazer à tona a imagem das barbaridades que me causaram no passado. Eles são a sombra da minha memória. Ao passar por alguns episódios é como se sentisse tudo novamente. Os invisíveis são como companheiros inamigáveis. Estão sempre por perto, mas a presença deles serve para fazer brotar dos meus olhos as lágrimas que correm pela minha pele seca, como chuva pelo córrego que não sentia a terra molhada à algum tempo. O pior é que para me ferir, muitas vezes, eles feriam antes quem estava próximo a mim.
Colocaram meu filho mais novo, quando ele tinha 10 anos, em cima de uma árvore e empurraram – o de lá. Antônio bateu a cabeça no chão. Quando ouvi o grito dele “Mããeee!” corri, coloquei ele no carro e o levei ao hospital. Descobri que a pancada causou algumas lesões, como consequência o menino adquiriu déficits nas funções cognitivas. Quando ele tinha 35 anos, os invisíveis deram um tiro nele e levaram meu Antônio para o Céu.
Meu filho mais velho nunca conseguiu casar. As coisas acontecem do jeito que os invisíveis querem. Os invisíveis raptaram a noiva de Alberto um dia, antes do casamento. Depois desnortearam a cabeça do homem. Agora ele anda sem rumo. Além disso, apagaram da memória de Alberto a lembrança de sua mãe. Fizeram com que ele se perdesse de mim. Nunca mais o vi.
Meu marido, depois que viu os invisíveis, por volta dos 60 anos começou a ter depressão e problemas no coração. Queria ficar trancado no quarto para não encontrar-se com eles, mas eles insistiam em assustar o homem. No dia em que apontaram uma faca na direção do meu marido nem precisaram ter o esforço de concretizar o plano. José Carlos teve um infarto. Os invisíveis levaram-no para o Céu.
Como se não fosse o suficiente, depois de terem tirado de mim os homens da minha vida, tiraram também tudo o que juntos conquistamos. Atearam fogo em minha casa e me colocaram para morar em um abrigo de idosos. O pior é que não tem como vingar-me ou impedi-los. Quando tento fugir, eles me encontram. Acho que era preferível que a morte viesse logo. Cuida-te leitor, pois esse arrepio que percorreu o seu corpo é o sopro dele em sua nuca.
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